sábado, 27 de agosto de 2011

Chiaki Ishii falando do grande uichiro-umakakeba

A base do Judô brasileiro

“Esse é forte”, afirma convicto Chiaki Ishii (foto), medalha olímpica, 69 anos, a respeito de Uichiro Umakakeba, 65 anos, que o buscou, quando jovem, para assimilar o estilo e a técnica do judô original japonês. Por motivos de família, Uichiro interrompeu os treinamentos e retornou a Bastos, no interior de São Paulo, onde estruturou o Kodokan ( escola de judô ), formando muitos atletas 

que representaram o país nas Olimpíadas.

Permaneceram, então, afastados por longos anos, até que, tendo superado uma difícil situação financeira, Umakakeba procurou o seu antigo professor.

Foi o reencontro de Chiaki Ishii com aquele que ele considera como sendo a base do Judô brasileiro.

Eis o relato do mestre:

A base do Judô brasileiro - Parte I

Como de hábito, levantei-me às 5 horas da manhã e fui ao Guarapiranga Golf Club para disputar uma partida com cerca de 10 fanáticos adeptos do golfe, esporte que pratico às quintas feiras e aos sábados, como parte do meu exercício físico.


Dezenove de fevereiro. Estava muito quente e por mais que me esforçasse, o jogo não andava. Cansado, regressei ao meu sítio em Ibiúna. Havia uma chamada telefônica da minha esposa, solicitando retorno urgente. Ela queria saber quando voltaria a São Paulo, pois o Umakakeba (foto abaixo) estava vindo ao meu encontro.

Pedi para avisar que estaria em casa no domingo à tarde, para depois jantarmos juntos.

Enquanto me dirigia à minha casa, imaginei sobre os objetivos da visita do Umakakeba. Será que queria mandar o filho ou um aluno para o Japão Budô Daigaku? Ou estaria querendo a minha presença em algum evento na cidade de Bastos?

Uichiro era um homem sério, evangélico praticante e dedicado.

Vim ao Brasil em 1964 para inicialmente estudar na Escola Agrícola de Presidente Prudente. Conheci-o quando comecei a ensinar judô naquela comunidade.

Eu tinha 22 anos e ele, 18.

“Há um judoca excepcional em Bastos”, comentou um professor local, o Hosokawa.

Na primeira oportunidade, procurei a Academia de Judô de Bastos para um treinamento.

Quem orientava os judocas bastenses era o professor Tosuke Sugui.

Naquele dia, estavam treinando cinco ou seis faixas pretas e cerca de 50 judocas, incluindo crianças.

Cheguei, já vestindo o judogui. De imediato, chamou minha atenção um judoca que se destacava, exibindo maior agilidade e perícia.

- Sou Ishii, de Presidente Prudente. Um treino, por favor.

Começamos. Segurando-o, senti que era muito forte. Tinha vigor e molejo assustadores. Fiz algumas entradas. Reparei que todos em volta tinham parado para assistir ao nosso treinamento. Percebi que deveria derrubá-lo primeiro. Apliquei uma seqüência de golpes, de sasae para osotogari e o derrubei. Ele tombou. Levantando-se, incrédulo, contra-atacou com golpes de uchimata, osoto, outi, seoinague. Usou todas as técnicas que dominava. Eu já o tinha jogado e estava tranqüilo. Fiz com que ele caísse umas cinco vezes. Constatei que ele tinha um quadril robusto e um hábil manejo do punho. Refeito, após suar em abundância, treinei com os demais judocas que não me impressionaram.

Foi o encontro inicial com Umakakeba.

A base do Judô brasileiro - Parte II

O pai, Tetsuo Umakakeba, era natural de Shingu, província de Wakayama, Japão. Veio para o Brasil, como imigrante, em 56. Tornou-se um próspero e bem-sucedido granjeiro, criando 30.000 aves e sendo proprietário de uma área de 16 alqueires.

Uichiro era seu filho único, não naturalizado.

O adversário mais temível, na época, era Mateus Suguizaki. Defrontavam-se com freqüência em campeonatos paulistas e brasileiros. Conhecia os dois e posso dizer que cada qual exibia uma rara habilidade. Mas a supremacia do Umakakeba era inconteste.

Em pouco tempo, mudei para São Paulo e comecei a ensinar judô na academia da Lapa. Era um recinto acanhado, semelhante a um ninho de enguia.

De repente, apareceu no local o Uichiro Umakakeba.

- Por favor, me aceite como discípulo. Farei qualquer coisa. Quero aprender o judô verdadeiro. Quero ganhar o Campeonato Brasileiro. Tenho apoio integral do meu pai, que disse: “Vá com coragem e se esforce”.

Eu disse que era casado e tinha uma filha. Esclareci que não havia condições para oferecer um alojamento. Ele respondeu que ia dormir na academia e comer em qualquer lugar, por conta.

- É sério? – perguntei – o treino é severo. Dá para agüentar?

Notei que ele estava determinado.

Aceitei-o formalmente como aluno, para começarmos o judô a dois.

Naquele tempo, eu treinava exaustivamente, visando o Sul Americano o Pan-Americano, o Mundial e as Olimpíadas. Viajava com freqüência para campeonatos e apresentações. Minha ausência era suprida com esmero pelo Umakakeba. O nosso treino era de 60 minutos. Transmiti a ele a minha paixão pelo judô e todo o conhecimento acumulado. Relatei como era o treino da seleção japonesa. Contei a vida e ministrei os golpes dos grandes mestres.

Umakakeba me auxiliou muito na comunicação com brasileiros. Acredito que é ele quem mais me conhece como um apaixonado pelo judô.

Ele só tinha um grave defeito. Não bebia. Tanto que nunca tivemos aquela conversa mansa e íntima que precede uma boa bebedeira. Era um ardoroso evangélico, mas a sua namorada, Naomi, demonstrava maior fervor que ele, na religião. Vivia mergulhada na fé e nos cânticos.

Embora devotado, Umakakeba era praticamente invencível nos treinamentos de judô. Ninguém o bateu nos treinos a que assisti, nem mesmo aqueles gigantes de dois metros, dos muitos que me visitavam de todo o Brasil. Inclusive, os judocas japoneses não tinham a menor chance.

Mesmo eu, nos treinos, caí algumas vezes. Ele era soberano nas lutas de solo. Nunca o vi perder.

Pois esse animado Umakakeba me procurou, dizendo:

- O papai sofreu derrame. Sou o mais velho dos irmãos e tenho que voltar. Desculpe.

Procurei dissuadi-lo:

- Vai começar a seletiva para o Pan-Americano. Tente.

Mas ele estava decidido. Foi embora.

- Quero ver meu pai e depois resolver. Desculpe.

A base do Judô brasileiro - Parte III

Houve um intervalo em que não ouvi falar do Umakakeba.

Também, estive muito ocupado com os meus afazeres: campeonatos e múltiplas atividades.

Tempos depois, chegou-me a notícia da construção de um Kodokan em Bastos. Tomei conhecimento de que ali estavam se concentrando judocas de todo o Brasil, para treinamentos pelo método japonês que abrangia o adestramento do kangueiko (inverno) e do shochugueiko (verão), seis horas por dia, com corrida, musculação e luta de solo, de manhã. À tarde, imitação dos ensaios da seleção olímpica japonesa. Um conjunto de atividades repetido todos os anos.

Muitos tiveram ligação com o judô de Bastos, a começar do Tiago Camilo, medalha olímpica.

A academia de Bastos é prodigiosa. Vi pais de alunos trabalhando na cozinha. Um ótimo ambiente.

Quando percebia que um judoca tinha potencial, constatava que era originário de Bastos, como Mário Tsutsui, Sérgio Sano, Alexandre Lee. Conheci muitos.

Umakakeba sucedeu a granja do pai, mas continuou investindo toda sua força física, espiritual e financeira no judô, morando com os discípulos e treinando-os com afinco.

Veio igualmente uma notícia ruim. A falência da granja Umakakeba. Perdeu tudo, diziam. Muitos cogitaram que o judô de Bastos havia chegado ao fim.

Não quis acreditar.

Recebi um telefonema do Umakakeba, que me visitou em 20.2.11. Estava um tanto calvo, mas era o mesmo Umakakeba que conheci.

- Sensei, como está? – perguntou – desculpe pelo afastamento. Hoje, vim agradecer.

- Não fiz nada – afirmei – eu é que agradeço pelo que você fez ao judô brasileiro. Tentei de todas as formas aplicar o seu estilo. Não consegui. Vim tocando o judô doméstico que não tinha condições de talhar um lutador de categoria. Quando conseguia formar um, perdia-o para clubes famosos. Experimentava introduzir um método mais rigoroso e os pais, inconformados, tiravam os alunos para levá-los a um outro lugar. Sem saída, ensinei minhas filhas que, com o casamento, partiram. Sou imensamente grato a você, por haver conseguido implantar o verdadeiro judô, que não se transmite apenas com uma fala bonita. O professor tem que participar fisicamente ou não gera seguidores. Falo com sinceridade. Você é grande.

A base do Judô brasileiro - Parte IV

Umakakeba revelou-me que estava um tanto incerto.

- Foi o senhor, professor Ishii, que me guiou para o judô autêntico. Com o espírito combativo que assimilei, consegui acertar a difícil situação da granja. Os 100 alunos de outrora estão reduzidos a 40. Mesmo assim, o sistema de treinamentos continua igual. É de quatro horas, todos os dias.A flexão de braço e o abdominal são repetidos 500 vezes. É tudo como aprendi do senhor. Muito obrigado!

- Aceito como aluno – continuou - em tempos difíceis para o professor, fui embora, de repente, devido ao derrame do pai, e saí sem dizer sayonara para a sra. Keiko. Carregava comigo um sentimento de culpa. Felizmente, a situação melhorou. Com o apoio da minha esposa, vim manifestar minha gratidão.

Em seguida, deixou na mesa um pacote de presente e dois envelopes.

Convidei-o para um jantar em restaurante chinês, juntamente com minha filha Vânia e seu namorado que havia retornado de Bragança Paulista. Conversamos bastante sobre o judô. Foram momentos extremante agradáveis.

Abri, em casa, com minha esposa, os envelopes. Ficamos espantados. Cada um continha muitas notas de R$100,00.

Tentei contatá-lo ao telefone. Não foi possível. Ficamos sem ação.

Bastos, com sua academia de 500 tatamis, é sinônimo do judô brasileiro.

Uichiro Umakakeba é o anjo enviado por Deus para o Brasil. Viveu o judô por 40 anos, um feito notável.

O Brasil conseguiu 15 medalhas olímpicas. Cravado nelas há a imagem simbólica e sublime do judoca bastense. Muitos atletas da seleção brasileira tiveram a influência decisiva do judô de Bastos. Sem Umakakeba, o número de medalhas olímpicas se reduziria à metade.

A pequena Bastos, antigo núcleo de imigração japonesa, é, com certeza, A BASE DO JUDÔ BRASILEIRO.

Eu me sinto menor. Não chego aos pés de Uichiro Umakakeba.

Chiaki Ishii






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